30 de novembro de 2010

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ILUMINANDO A ESCURIDÃO

Corria o ano de 197 a.e.c. e o Império Selêucida, herdeiro direto da Macedônia de Alexandre, era o mandatário sobre a Judeia (o novo nome grego da antiga região de Judá). A cultura grega se espalhava pelo oriente e o helenismo era inevitável.

Grosso modo, dizemos que Helenismo é a mistura da cultura grega com as culturas dos diversos povos conquistados anteriormente por Alexandre. Era uma época de grandes trocas culturais, as quais tiveram muitas influências positivas em todo o mundo antigo e também sobre o judaísmo.


Mas tudo mudou quando Antíoco IV subiu ao poder em 167 a.e.c.. Para ele, todas as culturas anteriores deveriam desaparecer, dando lugar unicamente à cultura helênica. O judaísmo foi proibido por decreto sob pena de morte. E a tradição corria o risco de desaparecer.


Os sacerdotes, em sua maior parte, abraçaram o helenismo e poucos cohaním se opuseram quando Antíoco introduziu elementos da religião grega no Templo de Jerusalém, transformando-o em mais um templo dedicado a Zeus. No interior do Códesh haCodashím, o lugar mais sagrado do edifício, introduziu-se uma imagem do novo patrono.


Quando animais impuros passaram a ser sacrificados no altar outrora dedicado ao Eterno, várias famílias sacerdotais abandonaram o profanado templo, deixaram a cidade de Jerusalém, e se espalharam pela Judeia com o objetivo de manter o judaísmo vivo no máximo número de cidades que fosse possível.


Entre essas famílias, encontravam-se os Hasmoneus (Hashmonáim): Matitiáhu e seus filhos, que vieram a ficar conhecidos pelo apelido de Macabeus (macabím). Quando os selêucidas iniciaram a perseguição contra as famílias sacerdotais, que insistiam no judaísmo, os Hasmoneus iniciaram uma batalha na cidade de Modiín. A notícia se espalhou. Estava começando a guerra macabeia.


O restante é a história da reinauguração do Templo e de seu conhecido e propagado milagre do óleo que durou sete dias a mais do que se esperava, trazendo luz e esperança ao povo judeu. A guerra continuou por outros quase vinte anos, até que a Judeia fosse novamente independente e o povo judeu fosse livre em sua própria terra.


Contudo, depois de terminada a guerra, os Hasmoneus assumiram o trono da Judeia, em vez de restaurá-lo à dinastia de David e Salomão. Como eram sacerdotes, concentraram também o poder religioso em suas mãos. Pela primeira vez na história judaica, o poder político era também exercido pelo Cohen Gadol. Pela primeira vez, o povo judeu viva sob uma teocracia.


Além de usurparem o poder, os Hasmoneus também iniciaram uma série de perseguições contra tudo o que não fosse judaico sob seu ponto-de-vista. A população não judaica foi forçada a se converter ao judaísmo. Repetiam tristemente tudo aquilo contra o que haviam lutado seus antepassados, os gloriosos Macabeus.


Ora, desde o retorno do Exílio da Babilônia e da construção do Segundo Templo, conviviam em Judá dois tipos de judaísmo: um deles centrado no Templo e nos sacrifícios, o outro centrado em casas de reunião e nas tefilót. . Este último tipo de judaísmo também foi veementemente perseguido pelos Hasmoneus, que não o aceitavam como o judaísmo “legítimo e milenar”, representado pelo Templo.


Dentro da família Hasmoneana também ocorriam sangrentas lutas pelo poder, e sua intolerância e violência foram a marca de seus 140 anos de reinado.


O último rei Hasmoneu, e também último membro desta família, foi assassinado num complô armado por Herodes e pelo Império Romano. A Judeia perdia sua independência novamente.


Sempre que ensino sobre esse período na escola, os alunos me perguntam por que eles nunca ouviram falar disso antes. Por que só falamos dos Macabeus e do milagre das luzes? Por que não falamos do terrível período que se seguiu?


Talvez nossos sábios tenham preferido enfatizar o milagre e sua ligação com a espiritualidade, em lugar de contar a história de como os Hasmoneus não honraram a memória de seus antepassados. Com isso, os sábios buscaram enfatizar a promessa/obrigação bíblica de sermos luz entre as nações.


Será que a vergonha pelas ações dos Hasmoneus pode justificar nossa constante censura à sua história? Claro que não. É urgente que relembremos essa história ao lado da comemoração de Chanucá e suas luzes.


Rabi Moshé ben Nachmán, o Rambán, enfatizou sua opinião de que não restaram descendentes dos Hasmoneus exatamente por causa de sua usurpação do poder, sua violência e intolerância, seu ódio gratuito e seu desprezo por tudo o que não fosse judaico, e também por tudo o que não fosse suficientemente judaico em sua opinião.


É fundamental que ensinemos a nossas crianças os valores de liberdade pelos quais lutaram os macabeus, mas também é preciso recordar que o simples acender da chanuquiá não traz por si só a luz ao mundo e ao povo judeu.


São nossas atitudes frente aos outros (e frente a nós mesmos) que, no final, trarão a luz para nossas vidas e para toda a humanidade. E então a luta dos macabeus não terá sido em vão, e teremos realmente compreendido a natureza daquele milagre.

19 de novembro de 2010

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ESTUDAR O TALMUD É FÁCIL?
Sobre a acessibilidade a um dos mais preciosos tesouros da literatura judaica

Qual a dificuldade em se estudar o Talmud? Podemos começar pela barreira idiomática, ou melhor, pelaS barreiraS idiomáticaS. Sim, pois o Talmud está em hebraico e aramaico.

Outra dificuldade talvez resida no tipo de linguagem, quase telegráfica, usada pelos notários para registrar as discussões na velocidade da fala. Diante da maior parte do texto, precisamos de alguém que preencha as lacunas, indicando o contexto, explicando o que quer se dizer em tão poucas palavras - pouco mais que 140 caracteres por frase (brincadeirinha, hehehehe...).

Por esse motivo, é sempre bom ter um rabino para elucidar essas partes. A corrente religiosa do rabino pouco importa, o que importa é que ele entenda de Talmud.

Também é bacana juntar-se a um amigo (ou amigos) para discutir a cada estudo. A aprendizagem vai muito além do exposto pelo texto e pelo rabino. A imaginação voa, o exercício intelectual é ótimo e a experiência é algo notável.

Mas os dois últimos parágrafos também encontram barreiras nos tempos modernos, devido às dificuldades geográficas e temporais dos nossos dias.

Alguns reclamam da falta de acesso à obra, afinal não se costuma ter acesso ao Talmud assim como se tem acesso a uma coca-cola.

Mas não precisa ser tão difícil. Alguns sábios da atualidade dedicaram-se boa parte de sua vida a ampliar o acesso do texto talmúdico a todos os judeus. As edições do Talmud Bavli da Soncino Press, do Schottenstein ou do Steinsaltz são exemplos claros disso: cada página do Talmud é acompanhada de uma tradução e comentários em várias línguas, como inglês, francês e hebraico moderno (!). Sim, porque o texto em hebraico antigo e medieval não é acessível por todo falante de hebraico da atualidade, sem contar o aramaico que acaba sendo, muitas vezes, uma completa incógnita para o não iniciado.

Você pode argumentar dizendo que, mesmo assim, não é todo mundo que consegue ter acesso diário ao Talmud, para realizar o Daf Yomí (sistema diário de estudo que consiste em se estudar uma página por dia). É aí que somos surpreendidos novamente!

Muitos são os sites onde você pode ter acesso a página por página do Talmud, diariamente, para estudá-lo. Experimente o Aleph Society, ou o Daf Yomi, ou o meu preferido Hebrew Books (onde você escolhe o tratado e a página que deseja estudar e ele se abre em PDF, em qualquer dia do ano - exceto em shabat e yom tov, claro!).

Agora que você tem acesso ao texto original, só falta o rabino que te ajude a compreendê-lo. Pois bem.

O Talmud publicado pela Soncino Press foi traduzido para o inglês pelo rabino I. Epstein, o qual autorizou sua publicação online, disponível atualmente no site Halakhah.com.

Logo, basta que você e seu amigo saibam inglês e se reúnam pra discutir pessoalmente, por MSN ou Skype, não importa! Melhor que isso, só se fosse em português, hein?

Por fim, pode ser que estudar o Talmud não seja exatamente fácil, mas a dificuldade maior não reside mais na acessibilidade. O resto a gente tira de letra!


Bons estudos!

11 de novembro de 2010

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UM MIDRASH DE RABI CAMÕES

Nesta semana lemos a Parashá Vaietsê. Continuando a saga da última semana, Yaacóv (Jacó) foge de seu irmão Essáv (Esaú), que o ameaçava de morte.

Em suas andanças, encontra seu tio Laván (Labão) e conhece Rachel, por quem se apaixona. Sem ter para onde ir, e estando em segurança em meio a parentes, Yaacóv faz um trato com Laván: trabalharia para ele por sete anos, apenas para receber, em troca, a mão de sua filha, Rachel.

Laván aceita o acordo, mas não o cumpre. Vendo que, ao fim dos sete anos, sua filha mais velha - Leá (Léa, Léia ou Lia, em português) - continua solteira, Laván decide enganar Yaacóv, entregando-lhe Leá em casamento, no lugar de Rachel.

Yaacóv só percebe a troca ao amanhecer quando, à luz do dia, procura pelo rosto de sua amada e, não a podendo encontrar, percebe-se casado com Leá.

Então, Yaacóv procura Laván para questionar-lhe. Mas o que está feito, está feito. A solução é encontrada na forma de mais sete anos de trabalho pela mão daquela a quem ele amou primeiro.

Muitas outras histórias acontecem nesta parashá, mas não tenho por objetivo contá-las. Há doze anos, em 1998, conheci essa história. E não foi lendo a Bíblia, indo à sinagoga, ou conversando sobre religião.

Com meus 18 anos de idade, ainda não tinha conhecido o maior expoente da língua portuguesa, o poeta Luís Vaz de Camões. E foi no cursinho pré-vestibular que o professor Heric me apresentou ao soneto abaixo, e (indiretamente) à parashá acima.


"Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
Mas não servia ao pai, servia a ela,
E a ela só por prêmio pretendia.

Os dias, na esperança de um só dia,
Passava, contentando-se com vê-la;
Porém o pai, usando de cautela,
Em lugar de Raquel lhe dava Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos
Lhe fora assim negada a sua pastora,
Como se a não tivera merecida,

Começa de servir outros sete anos,
Dizendo: — Mais servira, se não fora
Para tão longo amor tão curta a vida!"


Shabat shalom!